quarta-feira, 25 de abril de 2007

Ariano (Vilar) Suassuna


Ariano (Vilar) Suassuna Nascido em João Pessoa, PB, a 16 de junho de 1927, Ariano Suassuna mudou-se aos dez anos para o Recife, para seguir seus estudos. Em 1950 formou-se pela Faculdade de Direito do Recife. Graduou-se também em filosofia, e foi depois convidado a lecionar estética na Faculdade de Filosofia da universidade estadual. Apaixonado pelo teatro, assumiu o cargo de diretor do Teatro Amador Salesiano do Recife e passou e escrever uma coluna de crítica teatral no ´Diário de Pernambuco´. Sua primeira peça, ´Uma mulher vestida de sol´, escrita em 1947, recebeu o prêmio ´Nicolau Carlos Magno´, instituído por Pascoal Carlos Magno para estimular jovens autores do Nordeste. ´O arco desolado´ (1952), ´O casamento suspeitoso´ (1957), ´O santo e a porca´ (1957), ´A pena e a lei´ (1959), ´A farsa da boa preguiça´ (1960), são obras nas quais o teatro de ´mamulengos´ (marionetes) está aliado ao cancioneiro popular e à tradição ibérica, aspectos já mesclados no ´Auto da compadecida´, marco do teatro brasileiro, publicado em 1956. Suassuna foi secretário municipal de Educação e Cultura em Recife, autor de vários ensaios sobre pintura, gravura e escultura e fundador do Movimento Armorial, que congrega poetas, pintores e músicos na busca das raízes da cultura luso-brasileira, principalmente a que ainda é tão viva no Nordeste do Brasil. Um dos resultados dessa busca foi o ´Romance da pedra do reino´ (1971)

Auto da Compadecida
Sinopse:
Ariano Suassuna nos traz a simplicidade popular, sua religiosidade e seu cotidiano de forma poética e irônica, nesta peça que já virou seriado televisivo e longa metragem.

Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
Sinopse:
"Extraordinário romance-memorial-poema-folhetim que Ariano Suassuna acaba de explodir. Ler esse livro em atmosfera de febre, febril ele mesmo, com a fantasmagoria de suas desaventuras, que trazem a Idade Média para o fundo Brasil do Novecentos, suas rabelesiadas, seu dramatismo envolto em riso. Ah, escrever um assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer vida que gera obra desse calibre". (Carlos Drummond de Andrade)

O Santo e a Porca
Sinopse
Esta comédia em três atos, escrita em 1957 (ano que o jcnavegador nasceu), traz todas as características do Movimento Armorial, criado por Suassuna. Aproximando-se da literatura de cordel e dos folguedos populares do nordeste, narra a história de Euricão Árabe, um velho avarento devoto de santo Antônio que esconde em sua casa uma porca cheia de dinheiro. Segue o texto do primeiro ato:

O pano abre na casa de EURICO ARÁBE, mais conhecido como EURICÃO ENGOLE-COBRA.
CAROBA — E foi então que o patrão dele disse: "Pinhão, você sele o cavalo e
vá na minha frente procurar Euricão..."
EURICÃO — Euricão, não. Meu nome é Eurico.
CAROBA — Sim, é isso mesmo. Seu Eudoro Vicente disse: "Pinhão, você sele o
cavalo e vá na minha frente procurar Euriques..."
EURICÃO — Eurico!
CAROBA — "Vá procurar Euríquio..."
EURICÃO — Chame Euricão mesmo.
CAROBA — "Vá procurar Euricão Engole-Cobra..."
EURICÃO — Engole-Cobra é a mãe! Não lhe dei licença de me chamar de Engole-
Cobra, não! Só de Euricão!
CAROBA — "Vá na minha frente procurar Euricão para entregar essa carta a ele."
EURICÃO — Onde está a carta? Dê cá! Que quererá Eudoro Vicente comigo?
PINHÃO — Eu acho que é dinheiro emprestado.
EURICÃO — (Devolvendo a carta.) Hein?
PINHÃO — Toda vez que ele me manda assim na frente, a cavalo, é para isso.
EURICÃO — E que idéia foi essa de que eu tenho dinheiro? Você andou
espalhando isso! Foi você, Caroba miserável, você que não tem compaixão de um
pobre como eu! Foi você, só pode ter sido você!
CAROBA — Eu? Eu não!
EURICÃO — Ai, meu Deus, com essa carestia! Ai a crise, ai a carestia! Tudo
que se compra é pela hora da morte!
CAROBA — E o que é que o senhor compra? Me diga mesmo, pelo amor de
Deus! Só falta matar a gente de fome!
EURICÃO — Ai a crise, ai a carestia! E é tudo querendo me roubar! Mas Santo
Antônio me protege!
PINHÃO — O senhor pelo menos leia a carta!
EURICÃO — Eu? Deus me livre de ler essa maldita! Essa amaldiçoada! Ai a crise, ai
a carestia! Santo Antônio me proteja, meu Deus! Ai a crise, ai a carestia!
Entra MARGARIDA atraída pelo rumor. Vem
acompanhada de DODÓ VICENTE, disfarçado com
uma horrível barbicha, com a boca torta, com
corcova, coxeando e vestido de preto.
MARGARIDA — Papai! Que foi, meu pai? Ouvi o senhor gritar! Está sentindo
alguma coisas?
EURICÃO — Ai minha filha, me acuda! Ai, ai! Os ladrões, minha filha, os
ladrões!
MARGARIDA — Socorro! Socorro! Pega o ladrão!
EURICÃO — Ai minha filha, não grite assim não! Não grite, senão vão pensar que
a gente tem o que roubar em casa. E vêm roubar! Santo Antônio, Santo Antônio! Ai a
crise, ai a carestia!
MARGARIDA — Mas o que foi que houve?
EURICÃO — Ainda não houve nada, mas está para haver! Está para haver, minha
filha!
MARGARIDA — O que é? Que foi que houve, Caroba? Que foi, Pinhão! Pinhão, você
aqui? Ah, já sei o que houve, papai soube de tudo! É melhor então que eu confesse logo.
CAROBA — Que a senhora se confesse? Deixe para a sexta-feira, porque a
senhora aproveita e comunga! Que coisa, Dona Margarida só quer viver na igreja!
EURICÃO — Ai a crise, ai a carestia!
MARGARIDA — Mas afinal de contas, o que foi que houve? Meu pai, eu vou
contar...
DODÓ — Não!
PINHÃO — Não, não, Dona Margarida, quem fala sou eu! O que houve é que meu
patrão escreveu uma carta ao senhor seu pai.
MARGARIDA — Uma carta? Dizendo o quê?
EURICÃO — Você ainda pergunta? Só pode ser para pedir dinheiro emprestado!
Aquele usurário! Aquele ladrão!
CAROBA — Mas Seu Euricão, Seu Eudoro é um homem rico!
EURICÃO — E é por isso mesmo que eu estou com medo. Você já viu pobre pedir
dinheiro emprestado? Só os ricos é que vivem com essa safadeza! Santo Antônio, Santo
Antônio!
MARGARIDA — Mas papai já leu a carta?
EURICÃO — Não! Nem quero ler! Nem quero que você leia! Afaste-se, não
toque nessa amaldiçoada!
MARGARIDA — Então tome.
EURICÃO — Não tomo!
MARGARIDA — Leia o senhor mesmo!
EURICÃO — Não leio!
MARGARIDA — Não pode ser coisa ruim, papai!
EURICÃO — Só pode ser coisa ruim, minha filha!
CAROBA — Mas se for dinheiro emprestado, é só o senhor não emprestar, Seu
Euricão!
EURICÃO — É mesmo! É mesmo, Caroba! Eu nem me lembrei disso, no meu
aperreio!
CAROBA — Leia a carta, Seu Euricão!
MARGARIDA — É, papai, leia! Que mal faz?
PINHÃO — Se for dinheiro emprestado...
EURICÃO — (Jogando a carta no chão.) Ai!
MARGARIDA — (Apanhando-a.) Não é nada demais, está vendo? Olhe, veja o
senhor mesmo!
EURICÃO — Não fala em dinheiro não?
MARGARIDA — Não.
EURICÃO — Nem pede para eu avalizar alguma letra?
MARGARIDA — Não.
EURICÃO — Você jura?
MARGARIDA — Juro.
EURICÃO — Então eu leio. Mas Santo Antônio, veja lá! Não vá ser essa safadeza de
me pedir dinheiro emprestado!
MARGARIDA — Papai, leia a carta pelo amor de Deus!
EURICÃO — Você acha que eu devo ler?
MARGARIDA — Acho.
EURICÃO — Então eu leio. Meu caro Eurico: espero que esta vá encontrá-lo como
sempre com os seus, gozando paz e prosperidade! Ai! Margarida!
MARGARIDA — Que é, papai?
EURICÃO — Você passou o São João na fazenda de Eudoro Vicente.
MARGARIDA — É verdade, papai.
EURICÃO — Você foi dizer, lá, que eu era rico?
MARGARIDA — Eu? E eu ia dizer uma coisa dessa, meu pai? Nós somos tão
pobres!
EURICÃO — E como é que ele fala em prosperidade, aqui? Isso é dinheiro
emprestado, não tem pra onde!
MARGARIDA — É um modo de falar, papai, todo mundo diz isso nas cartas!
EURICÃO — É?
MARGARIDA — É!
EURICÃO — Então eu leio. Gozando paz e prosperidade. Sobretudo, espero que
esteja passando bem sua encantadora filha Margarida, cuja estada em minha casa ainda
não consegui esquecer. Ah, isso aí ele tem que reconhecer, minha filha é um patrimônio
que possuo. Hei de casá-la com um homem rico e ela há de amparar a velhice do
paizinho dela. Eudoro, com todo o dinheiro que tem, não tem uma filha como a
minha!
CAROBA — E o senhor, com toda a filha que tem, não tem uma riqueza como a
dele!
EURICÃO — Como foi?
CAROBA — Nada!
EURICÃO — Mando na frente meu criado Pinhão, homem de toda confiança...
PINHÃO — Obrigado!
EURICÃO — ...para avisá-lo de minha chegada aí. Aí aonde? Eudoro Vicente
pensa que, pelo simples fato de ter hospedado minha filha, eu estou obrigado a hospedálo?
Ele convidou Margarida porque quis, que não convidei ninguém!
MARGARIDA — Mas papai, ele foi tão delicado comigo!
EURICÃO — Mas eu não o convidei, esse é que é o fato! Eu não convidei
ninguém! E o que é isso aqui? O que é isso aqui?
CAROBA — Que é, Seu Euricão?
EURICÃO — Está vendo? Eu não dizia? Minha filha, você ainda causará minha
perdição, minha morte, meu assassinato! Ai a crise, ai a carestia!
MARGARIDA — Que foi, meu pai?
EURICÃO — A carta! A carta amaldiçoada! Bem que eu estava com um
pressentimento ruim!
MARGARIDA — Mas o que é que tem a carta? Dê cá, deixe eu ver! Onde é?
EURICÃO — Aí onde diz "de minha chegada aí". Ah carta amaldiçoada! Ai a
crise, ai a carestia!
MARGARIDA — De minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo privá-lo
de seu mais precioso tesouro!
EURICÃO — Está vendo? Esse ladrão! Esse criminoso! Meteu na cabeça que eu
tenho dinheiro escondido e quer roubá-lo. Estão me roubando! Ladrões, só pensam
nisso! Mas vou tomar minhas providências! Saiam, saiam imediatamente! Vou trancálos,
entrem aqui imediatamente! Entrem, entrem!
Empurra os quatro num quarto qualquer, que tranca
por fora. Tranca também as portas e janelas com barras
de madeira e abre pelo meio uma grande porca de
madeira, velha e feia, que deve estar em cena, atirada a
um canto, como se fosse coisa sem importância
Dentro dela, pacotes e pacotes de dinheiro. EURICÃO,
enquanto ergue e deixa cair amorosamente os pacotes,
vai falando, ora consigo mesmo, ora com Santo
Antônio, cuja imagem também deve estar em cena.
EURICÃO — Ladrões, ladrões! Será que me roubaram? E preciso ver, é preciso
vigiar! Vivem de olho no meu dinheiro, Santo Antônio! Dinheiro conseguido
duramente, dinheiro que juntei com os maiores sacrifícios. Eurico Arábe, Eurico
Engole-Cobra! Pois sim! Mas é rico e os que vivem zombando dele não têm a garantia
de sua velhice. Ah, está aqui, os ladrões ainda não conseguiram furtar nada. Ah,
minha porquinha querida, que seria de mim sem você? Chega dá uma vontade da gente
se mijar! Fique aí até outra oportunidade. Se eu pudesse, comia você inteirinha! Ai,
mas é impossível! Senão, desconfiam!
(Abre as portas, numa alegria satânica.)
EURICÃO — Venham! Ra, ra! Então vocês queriam roubar o velho Euricão Arábe,
hein? Euricão Engole-Cobra! Pois sim! Mas, se eu não cuido, as cobras é que vão me
engolir.
PINHÃO — É por isso que o povo diz que cobra que não anda não engole sapo.
EURICÃO — Acabe com esses ditados! Trabalhei com as cobras, é verdade,
vendendo meus remédios por todo o sertão. Mas hoje... Vocês pensam que sou rico,
não é?
MARGARIDA — Mas papai, quem vai pensar uma coisa dessa?
EURICÃO — Vivo cercado de inimigos, de ladrões. E agora, ainda mais esse
Eudoro Vicente, querendo roubar o que é meu! Esse ladrão, esse criminoso! Eu não
convidei ninguém, ele vem porque quer. E você, Seu Dodó, não diz nada? O senhor ouve
essa desgraça, vê que estão querendo me depenar, me explorar, e fica calado?
DODÓ — O senhor vá ao hotel de Dadá e reserve quarto para o fazendeiro. Quando
ele chegar, paga a conta!
EURICÃO — É mesmo! Dodó Boca-da-Noite! Que talento, que gênio! É a única
pessoa que sabe me compreender! Se você não fosse tão pobre e tão feio, minha filha bem
que poderia... Eu vou, sua idéia é boa. Mas cuidado, todo cuidado é pouco. Você fica
aqui, de olho. Não deixa entrar ninguém. Margarida, minha filha, você jura que fica aqui?
MARGARIDA — Juro.
EURICÃO — Jura que não deixa ninguém entrar até que eu volte?
MARGARIDA — Juro.
EURICÃO — Você também jura, Dodó Boca-da-Noite?
DODÓ — Juro.
EURICÃO — Você vigia minha filha e ela vigia você! Vou reservar o quarto para
Eudoro. E se ele chegar na minha ausência, vão logo esclarecendo tudo. Eu não
convidei ninguém e não tenho dinheiro nenhum. E que Santo Antônio me proteja dos
ladrões! (Sai.)
Imediatamente MARGARIDA abraça DODÓ.
MARGARIDA — Meu amor, o que é que se pode fazer para evitar isso? Espere, tire
essa barba horrível, não consigo me convencer de que é você! Estamos perdidos, vão
descobrir tudo.
DODÓ — A que horas meu pai chega, Pinhão?
PINHÃO — Chega já. Pelo menos foi o que ele disse na carta, mas falar é fôlego.
MARGARIDA — Que terá havido, Dodó, meu amor? Que foi que deu em seu pai
de repente? Terá desconfiado de que você está aqui?
DODÓ — Ele estava zangado, Pinhão?
PINHÃO — Não, pelo contrário, estava até alegre.
DODÓ — Falou alguma coisa a meu respeito? A respeito de eu ter ou não ter ido
para o Recife estudar?
PINHÃO — Não. Ele não tem a menor idéia de que o senhor está aqui.
MARGARIDA — O melhor é a gente confessar tudo, querido. Não agüento mais
essa agonia. A todo instante penso que meu pai vai reconhecer você.
DODÓ — Não está vendo que é impossível, meu bem? Quando seu pai me viu pela
última vez, eu era um menino. E com esta corcova, essa roupa, essa barba... Não é
Possível de jeito nenhum!
MARGARIDA — Mas o seu? Ele vai chegar e vai reconhecê-lo. Não seria melhor
dizer tudo?
DODÓ — Mas dizer tudo como, meu bem? Não tenho um tostão meu, meu pai é
contra a idéia de eu me casar sem estudar, seu pai só deixa você casar com um homem
rico... O que é que eu posso fazer contra este inferno?
MARGARIDA — Talvez se seu pai soubesse que a noiva sou eu, permitisse o
casamento e lhe desse terra para você trabalhar. Ele gostou tanto de mim quando
estive lá!
DODÓ — E eu mais ainda, tanto assim que abandonei meu estudo e vim me meter
nesse armazém por sua causa.
MARGARIDA — Mas com a chegada de seu pai, tudo se complica! Ele vai
descobrir!
DODÓ — Talvez você tenha razão, é melhor confessar. Quando ele chegar,
descobrimos tudo e ficamos de joelhos diante dos dois, pedindo consentimento para
nos casar.
CAROBA — O senhor quer um conselho?
DODÓ — Quero, Caroba, estou completamente cego.
CAROBA — Então não descubra nada!
MARGARIDA — Por quê? Você fala de um jeito tão misterioso!
CAROBA — É porque estou maldando um negócio mais misterioso ainda. Vou
dizer uma coisa curta e certa aos dois: não descubram a história não, porque o pai do
senhor vem é para pedir Dona Margarida em casamento.
DODÓ — O quê? Você está doida, mulher?
CAROBA — Estou nada, homem! Seu pai não é viúvo?
DODÓ — É.
CAROBA — A senhora não passou um tempo lá?
MARGARIDA — Passei.
CAROBA — Ele não simpatizou com a senhora?
MARGARIDA — Simpatizou.
CAROBA — Ele não disse, na carta, que vinha roubar o tesouro mais precioso de
Seu Euricão?
PINHÃO — Disse.
CAROBA — Então o que é que vocês querem mais? E casamento no duro!
DODÓ — É possível?
CAROBA — Por que não, Seu Dodó? E proibido casar?
MARGARIDA — Mas assim, sem um aviso, sem uma proposta!
CAROBA — Dona Margarida, essas coisas só se usam na primeira vez, na
segunda, vai direto! Casamento de viúvo é feito depressa e sem muita conversa!
MARGARIDA — Você acha que é possível?
DODÓ — Ouvi papai falar em casamento mais de uma vez, para sondar minha
opinião.
MARGARIDA — E se for, o que é que a gente faz, meu Deus?
CAROBA — É deixar as coisas como estão. Se o senhor tiver habilidade, pode ser
que seu pai não o reconheça, pelo menos hoje. Quando ele chegar, já é quase noite. Com
a corcova, a perna curta, a barbicha e a boca torta, o senhor bem que pode passar por
outro. Então a gente vê o que faz, examina tudo, vê se é casamento mesmo e pode
então partir daí para resolver tudo.
DODÓ — Como?
CAROBA — Eu sei lá, na hora se vê.
MARGARIDA — (A DODÓ) Você acha que está bem assim?
CAROBA — Pode ser que não esteja, mas é o jeito.
DODÓ — Está bem, Caroba, vou seguir seu conselho. E se tudo se resolver a
contento, eu saberei mostrar minha gratidão.
PINHÃO — Como?
DODÓ — Eu descobrirei um modo.
PINHÃO — Seguro morreu de velho.
CAROBA — O senhor não tem uma terrinha que seu padrinho lhe deu?
DODÓ — Tenho, mas é uma terrinha pequena, não dá para nada.
CAROBA — Para o senhor, para mim vale muito. A coisa que eu mais desejo na
vida é casar com Pinhão e ter uma terrinha para trabalhar nela com ele. Se a história se
resolver e eu conseguir fazer seu casamento, o senhor passa a escritura dessa terra para
nós dois?
DODÓ — Passo.
CAROBA — Prometido?
DODÓ — Prometido.
PINHÃO — Quem vive de promessa é santo.
CAROBA — Mas aí é pegar ou largar.
PINHÃO — Pois eu pego! Vou arranjar umas promissórias aí pela rua. O senhor
assina uma no valor da terra. Quando passar a escritura, eu devolvo a que o senhor
assinou, está bem?
DODÓ — Está, homem desconfiado! PINHÃO — O velho dobrou na esquina.
CAROBA — Saiam, deixem eu enfrentar Seu Euricão. É preciso preparar o terreno.
Cuidado, lá vem ele! Pinhão, fique, preciso de sua ajuda!
DODÓ põe os disfarces e sai atrás de MARGARIDA.
Entra EURICÃO.
EURICÃO — Ladrões, só vejo ladrões! Mas Santo Antônio me protege. Caroba,
você sozinha aqui? Que é isso? Onde estão os outros? Onde está Dodó Boca-da-
Noite?
CAROBA — Para falar com franqueza, não prestei atenção. Deve ter saído.
EURICÃO — Que conversa é essa? Você andou remexendo no que é meu?
CAROBA — Que interesse eu tinha em remexer nessa troçaria? Só se fosse para
ficar com asma, nesse mofo.
EURICÃO — Deixe ver os bolsos.
CAROBA — Veja.
EURICÃO — Sacuda o vestido.
CAROBA — (Obedecendo.) Está quente hoje, hein, Seu Euricão?
EURICÃO — Vire-se de costas.
CAROBA — Pois não.
EURICÃO — Deixe de manejos e abra as mãos.
CAROBA — Aqui estão.
EURICÃO — Não terá escondido nada embaixo da saía?
CAROBA — Epa, vá pra lá! Que molecagem é essa?
EURICÃO — Idiota, eu sou um velho. Minha intenção é outra.
CAROBA — Sei lá, isso é você quem diz!
PINHÃO — É melhor você se garantir, Caroba.
CAROBA, que tem se aproximado da porca, coloca a
mão descuidadamente em seu dorso.
EURICÃO — (Aterrado.) Saia daí!
CAROBA — Que foi?
EURICÃO — Uma aranha, aí!
CAROBA — Ai! (Esconde-se atrás da porca, abraçando-se com ela.)
CAROBA — Ai, tenho horror a aranha!
EURICÃO — Saia daí!
CAROBA — O que é?
EURICÃO — Um lacrau enorme! Saia, saia! Olhe o lacrau, Caroba!
CAROBA — Ai! Aonde, Seu Euricão?
EURICÃO — Aí na porca!
PINHÃO — Aonde, que eu não estou vendo?
EURICÃO — Desapareceu, deve ter fugido!
CAROBA — É capaz de estar embaixo da porca.
Abaixa-se e procura cuidadosamente, batendo na
porca com os nós dos dedos.
EURICÃO — Caroba! Olhe a caranguejeira!
CAROBA — Ai! Esta casa está cheia de bichos, Seu Euricão!
PINHÃO — Sabe por que é isso, Seu Euricão? São essas velharias que o senhor
guarda aqui. Só essa porca já tem mais de duzentos anos.
CAROBA — Por que o senhor não joga isso fora? Outro dia eu e Dona Margarida
quisemos fazer uma surpresa ao senhor. A gente ia jogar fora essa porca velha e
comprar uma nova para lhe dar.
EURICÃO — (Arriando numa cadeira.) Ai, ai! Miseráveis, miseráveis, assassinas,
bandidas! Logo minha porquinha que herdei de meu avô! Toque nela e quem vai
embora é você, está ouvindo, assassina? Sou louco por essa porca! Ai Santo Antônio,
querem me roubar, me assassinar, e ainda por cima comprar uma porca nova que deve
custar uma fortuna! Ladrões, ladrões! Ai a crise, ai a carestia! Santo Antônio, Santo
Antônio!
CAROBA — Está certo, Seu Euricão, está certo! Diabo duma agonia danada! Deixe
a porca de lado, ninguém toca mais nela! Que é que vale uma porca? O negócio agora é
evitar a facada que o tal do Eudoro vem lhe dar.
EURICÃO — A facada?
CAROBA — E então? O senhor vai ver se não é! Pinhão me contou como ele faz.
Chega cheio de delicadezas. A essa hora, já se informou de sua devoção por Santo Antônio.
Ele chega e faz que é devoto do mesmo santo. Elogia o senhor, elogia sua filha, pergunta
como vão os negócios, todo amável, e vai amolando a faca. (À medida que fala, vai
evocando a cena imaginária com gestos significativos e cortantes.)
CAROBA — Deve ser uma faca enorme, assim desse tamanho. Ele vai atolá-la até
o cabo em sua barriga, xuiu! (Dá a facada com a mão na barriga de EURICÃO, que cai
desfalecido numa cadeira.)
EURICÃO — Ai! Quanto você calcula que vai ser a facada, Caroba?
CAROBA — Homem, pelo tamanho da faca, calculo aí nuns vinte contos.
EURICÃO — Ai! Caroba! Tenha compaixão de um pobre velho.
CAROBA — Mas é claro que tenho, Seu Euricão! Já pensei em tudo e vou
defendê-lo contra esse urubu.
EURICÃO — Você vai, Caroba? Como?
CAROBA — O meio é contra-atacar com as mesmas armas. O senhor lhe oferece
jantar, dá-lhe vinho, cerveja, e quando ele estiver bem entusiasmado para dar o golpe,
o senhor dá nele primeiro.
EURICÃO — Como?
CAROBA — Pedindo vinte contos emprestados.
EURICÃO — Ra, ra! Ra, ra! Grande idéia, Caroba, idéia genial! Mas como é que se
paga o jantar?
PINHÃO — O senhor tira dos vinte contos!
EURICÃO — Ladrão, miserável! Já quer gastar meus vinte contos que eu
arranquei daquele criminoso com tanto trabalho! Quer me matar de fome, bandida?
Quer gastar meu dinheiro?
CAROBA — Mas Seu Euricão, o dinheiro não é dele?
EURICÃO — Ai, é mesmo! E se ele não emprestar, Caroba?
CAROBA — Ah, ele empresta! Vou dar um jeito nisso. O senhor me dá uma
comissão?
EURICÃO — Se você arranjar os vinte contos? Dou.
CAROBA — Quanto?

EURICÃO — Eu lhe dou metade daquele jerimum que o cego me deu ontem.
CAROBA — É pouco! Eu quero é dinheiro, Seu Euricão!
EURICÃO — Ai, ai! Ainda não tenho os vinte contos e já querem me roubar! Não
dou, não dou de jeito nenhum.
CAROBA — Então, estou fora do negócio.
EURICÃO — Não! Preciso de você, Caroba, não me abandone!
CAROBA — Então me dê minha comissão.
EURICÃO — Quanto é que você quer?
CAROBA — Quinhentos. EURICÃO — Dou cinqüenta.
CAROBA — Estou fora!
EURICÃO — Cem. CAROBA — Estou fora!
EURICÃO — Cento e cinqüenta.
CAROBA — Estou fora!
EURICÃO — Duzentos.
CAROBA — Estou fora!
EURICÃO — E eu também! Estou fora, porque daí não passo de jeito nenhum!
Estou fora!
CAROBA — Então eu entro! Fica pelos duzentos. Vou encomendar o jantar no
hotel de Dadá.
EURICÃO — E como é que ele vai pagar, se sou eu que encomendo?
CAROBA — O senhor tira dos vinte contos.
EURICÃO — E se ele não empresta?
CAROBA — Ai, pelo menos a gente ganha o jantar.
EURICÃO — E com que é que se paga o jantar? Com meu dinheiro?
CAROBA — O jantar não vai ser pago com os vinte contos, Seu Euricão?
EURICÃO — Ai, é mesmo. Assim, eu quero!
CAROBA — Então vá, Pinhão. Vá e encomende o jantar que hoje aqui se come de
noite e se come bem. Vá, Pinhão.
PINHÃO — Meu patrão!
CAROBA — Seu patrão?
PINHÃO — Sim, chegou. Dona Benona Arábe está recebendo meu patrão aí fora,
na calçada, perto do cemitério da igreja.
CAROBA — Saia por aqui, então. É preciso que ele pense que você está do lado dele.
Senão ele desconfia, fica de sobreaviso e não empresta os vinte contos, não é, Seu Euricão?
EURICÃO — É, Pinhão, meu filho, saia por ali. Nessas coisas, a surpresa é tudo.
Vá e volte para nos ajudar, que a luta com esse criminoso vai ser grande.
PINHÃO sai ao mesmo tempo que BENONA entra.
BENONA — Eurico, Eudoro Vicente está lá fora e quer falar com você.
EURICÃO — Benona, minha irmã, eu sei que ele está lá fora, mas não quero falar
com ele.
BENONA — Mas Eurico, nós lhe devemos certas atenções.
EURICÃO — Você, que foi noiva dele. Eu, não!
BENONA — Isso são coisas passadas.
EURICÃO — Passadas para você, mas o prejuízo foi meu. Esperava que Eudoro, com
todo aquele dinheiro, se tornasse meu cunhado. Era uma boca a menos e um patrimônio a
mais. E o peste me traiu. Agora, parece que ouviu dizer que eu tenho um tesouro. E vem
louco atrás dele, sedento, atacado de verdadeira hidrofobia. Vive farejando ouro,
como um cachorro da molest'a, como um urubu, atrás do sangue dos outros. Mas ele
está muito enganado. Santo Antônio há de proteger minha pobreza e minha devoção.
CAROBA — Mas enquanto Santo Antônio não se vira, vamos ajudá-lo um pouco. Seu
Euricão, saia por um momento.
EURICÃO — Você se encarrega de preparar tudo?
CAROBA — É claro.
EURICÃO — Então eu saio. Traga o cachorro, Benona, traga o urubu. Se Deus
quiser e Santo Antônio me ajudar, o golpe vai se virar por cima dele. Eu fico ali, assim
que o terreno estiver preparado, me chame. (Sai.)
CAROBA — Dona Benona, espere um instante. Quero lhe dizer um negócio, em
caráter confidencial.
BENONA — Que é, Caroba?
CAROBA — Pinhão está desconfiado de que Seu Eudoro vem pedir a senhora em
casamento.
BENONA — Caroba!
CAROBA — É verdade, Dona Benona! A senhora não foi noiva dele?
BENONA — Fui, mas briguei por uma besteira e ele se casou com outra.
CAROBA — Mas o fato é que está viúvo e arrependido! Ele mandou dizer a Seu
Euricão que vinha privá-lo de seu tesouro e Pinhão acha que só pode ser a senhora.
BENONA — É possível?
CAROBA — A senhora mesmo vai ver, daqui a pouco. Mas parece que ele está
meio envergonhado, depois de tanto tempo. É natural, mas é preciso ajudá-lo.
BENONA— (Faceira.) Ele está acanhado porque quer, porque eu nunca o esqueci.
CAROBA — Foi nada?!
BENONA — E então?
CAROBA — Pois eu vou ajudar Seu Eudoro a sair do acanhamento. A senhora me
deixe só com ele que eu vou me certificar. Se for verdade, pode deixar que eu puxo a
conversa na frente de Seu Euricão e a senhora noiva.
BENONA — Ai, Caroba, estou tão confusa! Foi tudo tão de repente! E assim, de
surpresa, sem me dizer nada! Mas Eudoro sempre foi meio doidinho!
CAROBA — É casamento na certa! A senhora saia e deixe tudo comigo!
BENONA — Pois está certo. Fique, fale com ele e que Santo Antônio nos proteja.
Entra EUDORO VICENTE. BENONA lança-lhe
um olhar provocante e terno.
BENONA — Eudoro, meu irmão vem já. Com licença, malvado! (Sai.)
EUDORO — Que foi que houve aqui, meu Deus, para Benona me olhar assim.
Que coisa esquisita!
CAROBA — Ah, e o senhor ainda não soube de nada não?
EUDORO — Não, o que foi que houve?
CAROBA — O que houve, Seu Eudoro, foi que o povo daqui está desconfiado de
que o senhor veio noivar.
EUDORO — E por que estão pensando nisso?
CAROBA — O senhor mandou dizer na carta que ia roubar o tesouro de Seu
Euricão e todo mundo está pensando que isso quer dizer "casar com Dona
Margarida".
EUDORO — Pois estão pensando certo, Caroba. Desde que Dodó saiu de casa
para estudar, estou me sentindo muito só. Simpatizei com a filha de Euricão e resolvi
pedi-la, apesar da diferença de idade.
CAROBA — O senhor está parecendo meio encabulado de pedir.
EUDORO — É verdade, Caroba. Não sei como vou começar. Minha idade não
permite mais certas coisas que agradam às moças, de modo que...
CAROBA — Então deixe comigo. Seu Euricão é louco pela filha. Não gosta nem
de falar em casamento para ela, com medo de perdê-la. Mas, ao mesmo tempo, quer
casá-la, pois considera a moça uma espécie de patrimônio. O senhor agrade o velho,
seja delicado, diga que ele vai bem de saúde e de negócios, fale em Santo Antônio, que
é a devoção dele, e deixe o resto comigo. Depois que eu puxar o assunto, depois que
tudo estiver encaminhado, aí o senhor faz o pedido, está bem?
EUDORO — Está ótimo, Caroba. Para animá-la eu... (Remexe no bolso.)
CAROBA — Nada disso, a única coisa que me interessa nisso é a estima que
sempre lhe tive. Mas já que o senhor insiste...
EUDORO — Pois tome e puxe o assunto. Creio que Euricão não criará dificuldade.
Gosta da filha, mas gosta ainda mais de dinheiro e, sabendo que tenho algum... Mas o que é
isso?
CAROBA — Não é uma das velharias de Seu Euricão? Herdou essa porca ainda do
tempo do avô e não há quem faça ele jogá-la fora.
EUDORO — Do tempo do avô, é? Interessante, muito interessante! Gosto muito
de antiguidades!
CAROBA — Então eu vou chamá-lo. Seu Euricão! Seu Euricão! Seu Euricão
Engole-Cobra!
EURICÃO — (Entrando.) Engole-Cobra é a mãe. Bom dia, Eudoro Vicente.
EUDORO — Bom dia, Eurico Arábe. Santo Antônio o guarde, Santo Antônio o
proteja a você e a toda a sua família.
EURICÃO — (À parte, a CAROBA.) Se não for dinheiro emprestado, eu estufe! Que
Santo Antônio também o proteja, Eudoro Vicente.
EUDORO — Então sempre em saúde e prosperidade, hein?
EURICÃO — É dinheiro, não tem pra onde! Prosperidade, eu? Você sim, pode
dizer que vai bem com todas aquelas fazendas!
EUDORO — Que é que adianta a terra, Eurico? Vem a seca e morre tudo. A
felicidade é que tenho amigos e são eles que me valem nas horas de aperto.
EURICÃO — É dinheiro emprestado, não tem pra onde! Você gosta de contar
desgraça, mas é para esconder a fortuna. Eu é que só tenho, para contar, miséria. Os ricos,
como você, contam dinheiro, Eudoro, os pobres, como eu, desgraça.
EUDORO — Que nada, isso é modéstia! E quanto à crise, se puder fazer alguma
coisa para ajudá-lo...
EURICÃO — Isso parece promessa, mas é para preparar o pedido. Está faminto,
sedento por dinheiro emprestado.
EUDORO — Que tal lhe parece minha família?
EURICÃO — Boa.
EUDORO — E meu caráter?
EURICÃO — Bom.
EUDORO — E meus atos?
EURICÃO — Nem maus nem desonestos.
EUDORO — Qual é a opinião que você tem de mim?
EURICÃO — Sempre o considerei um cidadão honrado.
EUDORO — Pois eu também acho você um cidadão sem defeitos.
EURICÃO — Se não for dinheiro emprestado, eu me dane! O que é que você
quer?
CAROBA — Seu Euricão, o senhor sabe perfeitamente que Seu Eudoro gostou de
uma pessoa de sua família.
EURICÃO — Sei, mas pensei que isso já tivesse passado.
CAROBA — Ora passado, agora foi que começou! A simpatia que essa pessoa
inspirou a Seu Eudoro só fez aumentar com a separação. Pois bem, Seu Eudoro veio
pedi-la em casamento.
EURICÃO — Está dada, pode se considerar noivo. Mas eu preciso de vinte contos
emprestados para fazer a festa do casamento.
EUDORO — Mas eu ainda não sei se ela aceita!
EURICÃO — A responsabilidade é minha, pode se considerar noivo! Não está
vendo que eu não vou perder uma oportunidade dessa? Você está noivo, Eudoro, e eu
preciso de vinte contos, esse é que é o fato.
EUDORO — Então mande chamar Margarida.
EURICÃO — Margarida? Pra quê?
CAROBA — Seu Eudoro quer vê-la depois de tanto tempo, é perfeitamente
natural, Seu Euricão. Ele já viu Dona Benona, agora quer ver Dona Margarida!
EURICÃO — Ah, sim. Mas quero logo lhe dizer, Eudoro, que ela esteve lá foi a
convite seu. Eu não convidei ninguém, você vai para o hotel de Dadá!
EUDORO — Está bem, mas posso ver Margarida?
EURICÃO — Pode, por que não?
EUDORO — Diziam que você era tão cheio de coisas com ela!
EURICÃO — Ah, sou. Mas confio em você, por causa de sua idade e porque agora
você é noivo. Você promete ir para o hotel?
EUDORO — Prometo, homem cuidadoso! Não fica bem eu, noivo, hospedado
em casa da noiva, não é?
EURICÃO — Ah, é, nessas coisas eu sou inflexível! Basta dizer que mantenho um
guarda, pago com meu dinheiro, só para tomar conta de Margarida. Tem ordem de
não deixá-la um só instante.
EUDORO — Um guarda? Um homem?
EURICÃO — Sim, mas é tão feio que não há perigo. Margarida tem ódio dele.
Mas eu gosto, porque ele é prudente e econômico, chega a me dar lições. Chama-se Dodó.
EUDORO — Meu filho tem esse mesmo apelido de Dodó!
CAROBA — Mas seu filho é coxo?
EUDORO — Você já morou em minha terra e sabe que não.
CAROBA — É corcunda?
EUDORO — Não.
CAROBA — Tem uma barbicha?
EUDORO — Não.
CAROBA — Veste sempre preto?
EUDORO — Não.
CAROBA — É amarrado?
EUDORO — Não.
CAROBA — Tem a boca torta?
EUDORO — Não.
EURICÃO — Então não é esse não, porque Dodó Boca-da-Noite tem tudo isso e
mais alguma coisa. Vou chamar os dois aqui. Margarida! Dodó Boca-da-Noite!
Entra MARGARIDA.
EUDORO — Oi, você não disse que ela é sempre vigiada?
EURICÃO — Margarida, você quer me desmoralizar? Sustente o pudor,
Margarida! Olhe o recato, Margarida! Onde está Dodó?
MARGARIDA — Seu Dodó sentiu-se mal e ficou no armazém, papai.
EURICÃO — Sentiu-se mal o quê? Empregado meu tem lá licença de se sentir mal!
Dodó, Dodó! Dodó Boca-da-Noite!
DODÓ entra, exagerando a corcova, o andar e
sempre de costas, para não ser reconhecido.
EURICÃO — Cumpra com sua obrigação, está ouvindo?
DODÓ — Estou.
EURICÃO — É um bom servidor, gosto muito dele! Venha cá conhecer meu
amigo, Dodó.
DODÓ — Ai!
EURICÃO — Que foi?
MARGARIDA — Eu não disse que ele estava doente?
DODÓ — Seu Eurico, um copo dágua, Seu Eurico!
EUDORO — Tome, moço.
DODÓ — (Dando-lhe as costas.) Não! Já passou, estou bonzinho!
CAROBA — Seu Euricão mandou chamar a senhora, Dona Margarida, porque Seu
Eudoro Vicente fez o pedido de casamento.
EURICÃO — E já que ele vai entrar na família, minha filha...
MARGARIDA — É verdade?
EUDORO — É, Margarida. Ainda não tive tempo de ir ao hotel, mudar de roupa,
mas quero logo pedir uma entrevista a você para conversarmos.
EURICÃO — Ah, não, entrevista não. A entrevista é essa!
EUDORO — Mas Eurico...
MARGARIDA — Não precisa nem o senhor falar, meu pai. Prefiro ir para um
convento.
EURICÃO — Está vendo o que é recato, Eudoro? Aí, Margarida! Sustente o
pudor, Margarida, sustente o recato. Trata-se de Eudoro, é uma pessoa séria, de mais
idade e além do mais vai entrar na família. Mas recato é recato! Entrevista,
sozinha, com ninguém!
EUDORO — Mas Eurico...
MARGARIDA — Já disse que prefiro ir para um convento. E vá marcar entrevista com
gente de sua idade, está ouvindo? E saia daqui com seu casamento! Saia daqui porque eu...
CAROBA põe o dedo nos lábios e faz-lhe sinal
para que ela saia. Margarida se interrompe bruscamente e
começa a chorar, saindo arrebatadamente da sala,
acompanhada sempre pelo fiel DODÓ.
EUDORO — Mas Eurico...
CAROBA — Coitada, foi pega de surpresa pela notícia, é muito apegada com a
família, principalmente com Dona Benona, e está com medo de perdê-la.
EURICÃO — É isso mesmo. Não se ofenda, Eudoro, vou acalmá-la. Uma
conversa comigo e em dois tempos ela vai ser a primeira a apoiar a idéia. (Sai.)
EUDORO — A apoiar que idéia? A da entrevista?
CAROBA — Não, a do casamento.
EUDORO — Bem que eu não queria fazer isso, assim de repente! Agora a moça
está nervosa!
CAROBA — Isso passa, deixe comigo! Ela faz isso porque está na frente do pai.
Mas quando ela falar com o senhor a sós, há de ver que ela quer o casamento.

EUDORO — Mas o fato é que não vou poder falar com ela a sós.
CAROBA — Ah, isso não. Vai, e quem vai arranjar a entrevista sou eu.
EUDORO — Você? Como? Onde?
CAROBA — Aqui e de noite, depois que o velho estiver dormindo. Ele dorme cedo,
de modo que depois do jantar...
EUDORO — E se alguém acordar?
CAROBA — É fácil disfarçar. Dona Margarida levanta-se às vezes à noite, para
rezar escondido pela mãe.
EUDORO — Escondido por quê?
CAROBA — Seu Euricão não gosta disso. A mulher abandonou-o e, depois que ela
morreu, ele mandou buscar o corpo e enterrou aí. Mas não gosta nem que se fale dela. De
modo que, se Dona Benona acordar, diz-se que foi isso. Dona Benona é a mais perigosa,
tem mania de recato. E a conselho dela que Seu Euricão fica tão rigoroso com a filha.
EUDORO — Benona sempre foi assim, creio mesmo que foi por causa disso que
ela... Mas enfim, você arranja a entrevista?
CAROBA — Arranjo. Depois do jantar, quando todo mundo estiver deitado, eu
destranco essa porta. Aí o senhor volta e pode falar com Dona Margarida, aqui.
EUDORO — Mas será que ela aceita?
CAROBA — Aceita, a paixão dela pelo senhor é grande, vai vencer de uma vez
só o pudor e o recato.
EUDORO — Está bem, mas cale a boca. O homem vem aí.
Entra EURICÃO.
EURICÃO — A moça se trancou e não houve jeito. É o recato, coitada. Mas você
compreende isso, não é?
EUDORO — É.
EURICÃO — Então adeus, Eudoro Vicente, não quero retê-lo mais, você deve
estar com fome e o hotel...
CAROBA — Patrão!
EURICÃO — Hein?
CAROBA — E o jantar?
EURICÃO — Cale a boca, miserável!
CAROBA — O senhor não prometeu um jantar? É para celebrar o noivado.
EUDORO — Um jantar? Ah, aceito, pois não. Venho jantar e depois vou dormir
no hotel.
EURICÃO — Está bem, está bem. Essa você me paga, Caroba! E a respeito dos
vinte contos?
EUDORO — No jantar nós falaremos.
EURICÃO — Ótimo, ótimo. Essa parte está ótima.
EUDORO — Então, até já! E preparem o espírito da noiva! (Sai.)
CAROBA — Seu Euricão, espero que o senhor não se esqueça de minha
comissão.
EURICÃO — Que comissão?
CAROBA — A que o senhor prometeu, se eu arranjasse os vinte contos.
EURICÃO — E quem disse que você me arranjou vinte contos? Aliás, ninguém me
arranjou vinte contos. Eudoro Vicente prometeu, mas ainda não arranjou nada, vai arranjar!
CAROBA — Mas quem planejou tudo fui eu!
EURICÃO — Mente, velhaca! Você tinha planejado tudo para o jantar e, se eu
tivesse esperado, talvez a essa hora estivesse esfaqueado. Quem pressentiu o perigo fui eu,
quem pediu o dinheiro fui eu e quem arranjou o dinheiro fui eu! Você não tem direito à
comissão de qualidade nenhuma!
CAROBA — Mas Seu Euricão...
EURICÃO — Adeus, Caroba, já basta o prejuízo do jantar.
CAROBA — Mas Seu Euricão...
EURICÃO — Dê o fora, Caroba.
CAROBA sai de má vontade. EURICÃO vai até a
porca e alisa-a carinhosamente.
EURICÃO — Ai minha porquinha do coração, a luta é grande contra os ladrões.
Mas arranjei sempre mais vinte contos para seu buchinho.
Entra EUDORO.
EUDORO —Eurico...
EURICÃO — (Dando um salto.) Santo Antônio me proteja! Que negócio é esse
de sair da casa dos outros e voltar nos mesmos pés? Você está me vigiando?
EUDORO — Não, Eurico, desculpe.
EURICÃO — Você notou alguma coisa?
EUDORO — Alguma coisa de quê?
EURICÃO — Você pensa que sou idiota, para dizer? Notou ou não notou?
EUDORO — Não notei nada!
EURICÃO — E que veio fazer aqui, entrando de emboscada, como um
assassino? Como um ladrão?
EUDORO — Afinal, o que é isso? Que é que você quer dizer? Voltei porque vim
lhe oferecer preço por essa porca que você guarda aí.
EURICÃO — Preço por minha porca? Ai! Socorro! Ladrão! Pega o ladrão!
EUDORO — Que é isso, homem?
EURICÃO — Ai a crise, ai a carestia! Ai Santo Antônio! Veja o que querem
fazer comigo!
EUDORO — Mas afinal de contas...
EURICÃO — Ai minha porquinha que herdei de meu avô e esse criminoso quer
tomar! Ai minha porquinha! (Cai desfalecido numa cadeira,)
EUDORO — Está bem, homem de Deus, se não quer vender, não venda! Precisa
essa agonia? Diabo duma esquisitice danada! Vá ser esquisito assim no inferno!
Vai saindo, quando encontra BENONA.
BENONA — Dodó!
EUDORO — (Formal) Minha senhora!
BENONA — Que minha senhora que nada, malandro! Já soube de tudo e vim
lhe dizer que concordo de todo coração! Está tudo esquecido.
EUDORO — Fico muito contente com isso, Benona.
BENONA — E eu mais ainda, Dodó. Olhe como estou! Desde que você
apareceu que meu coração começou a bater. Você acha que eu devo lhe dar um beijo?
EUDORO — Mas Benona, você acha que ficaria próprio?
BENONA — Deixe de preconceitos, homem! Agora estou diferente, a vida me
ensinou a ser menos tola! Não quer? Bem, então fica para mais tarde. Vou me vestir
para o jantar. Mas não deixo você sair sem lhe dar um beliscão no espinhaço de jeito
nenhum, quero me lembrar dos velhos tempos. Chegue aqui esse espinhacinho,
safado!
EUDORO — Benona!
BENONA — Ai meu Deus, quanta timidez, como é lindo isso! Esse Dodó sempre
foi doidinho! Não tem isso não, lá vai beliscão!
EUDORO — (Correndo.) Benona! Diabo de povo mais esquisito! Benona! Ai! (Sai
correndo, com BENONA atrás.)
EURICÃO — Ai minha porquinha adorada, ai minha porquinha do coração!
Querem roubá-la, querem levar meu sangue, minha carne, meu pão de cada dia, a
segurança de minha velhice, a tranqüilidade de minhas noites, a depositária de meu amor!
Mas parece que Santo Antônio me abandonou por causa da porca. Que santo mais
ciumento, é "ou ele ou nada"! É assim? Pois eu fico com a porca. Fui seu devoto a vida
inteira: minha mulher me deixou, a porca veio para seu lugar. E nunca nem ela nem você
me deram a sensação que a porca dá. Ah, minha bela, ah, minha amada! Aqui você fica
muito à vista de todos, todo mundo deseja a sua beleza, a sua bondade. É melhor levá-la
para um lugar escondido. A mala do porão, é lá! Aí você ficará em segurança e eu
poderei dormir de novo.
Entra num socavão sob a escada, sobraçando a
grande porca de madeira, e volta sem ela.
EURICÃO — Agora, sim. E você, Santo Antônio, deve se contentar agora com
minha pobreza e minha devoção. Eu não o esqueci. Não deixe que esses urubus
descubram meu dinheiro! Faça isso, meu santo, e a banda de jerimum que eu ia dar a
Caroba será sua. Menos as sementes, viu? As sementes eu quero para fazer xarope e
vender no armazém. Ganha-se pouco, mas sempre é alguma coisa para se enfrentar a
crise e a carestia! (Persigna-se e sai.)
FIM
DO PRIMEIRO ATO

Nenhum comentário:

O Canto encantado

Aguardando o solstício de 21dez12